O poderoso nome
secreto de Rá
Rá era o grande senhor que tudo criara, céu e
terra, homens e deuses e toda a espécie de animais. Era o rei dos homens e dos
deuses, sendo infinitamente variado em suas formas e infinitamente variável nos
seus propósitos. Era dotado de muitos nomes, sendo alguns deles tão secretos
que até mesmo os deuses os desconheciam. Isis, porém, sentiu grande inveja
da omnipotência de Rá. Tinha assumido a forma de uma mulher e tornara-se
extremamente persuasiva e muito hábil no uso das palavras. Infelizmente,
criara antipatia pela humanidade e voltara inteiramente o seu interesse para os
milhões de deuses e para as miríades de formas divinas nos céus. Começou então
a pensar em como seria possível usurpar o poder de Rá e assim tornar-se senhora
do céu e da terra no lugar dele.
No seu desejo ilimitado de conseguir os seus fins,
pensou em muitos meios pelos quais poderia derrotar o grande deus do céu, mas
uma vitória material não seria suficiente. Tinha ainda de conseguir uma
ascendência moral, debaixo da qual, Rá nada pudesse fazer.
Depois de muito pensar ocorreu-lhe que uma maneira
que poderia ter êxito seria descobrir o nome secreto de Rá: saber o nome
secreto seria conseguir o domínio sobre o seu poder.
Todos os dias, Rá chegava para atravessar os céus
na sua barca divina, seguido por uma numerosa companhia de divindades e seres
divinos menores, e se estabelecia nos dois tronos dos horizontes. Nessa época,
porém, ele já estava muito velho e o seu comportamento era um pouco senil,
tanto assim que ele costumava babar-se.
Certa vez, ao passar, deixou cair saliva no chão, e
Isis que vinha atrás dele pegou um pouco da saliva misturada com a terra em que
havia caído. Com esses materiais, fez uma espécie de argila e com ela modelou
uma serpente em forma de seta. Enquanto a serpente estava em sua
mão, permanecia sem vida e, dessa forma, ísis colocou-a num sítio por onde
Rá passaria na sua jornada diária através da terra.
Quando o grande deus solar, acompanhado pelo seu
séquito divino, tomou o seu caminho e chegou ao local previsto, a serpente
ganhou vida. Inspirada pela magia de Isis nela colocada, cravou os dentes em
Rá, e este deu um forte grito que ressoou através dos céus.
«O que foi isso?», perguntou o séquito dos deuses,
e a pergunta foi repetida pelos deuses que seguiam Rá. Mas o grande deus não
podia responder, porque uma extraordinária fraqueza descera sobre ele. Os
dentes batiam, as pernas e braços tremiam, enquanto o veneno da serpente lhe
tomava posse do corpo como a cheia do Nilo toma posse da terra do Egito.
Deixou-se cair ao chão, aterrorizado, convulsionado
pelos espasmos de dor que lhe sacudiam o corpo. Era um espectáculo aflitivo, e
ele não parecia mais o grande deus, senhor de toda a criação. Durante algum
tempo, Rá ficou mteiramente indefeso sem poder fazer coisa alguma para indicar
o que estava a acontecer-lhe. Mas dentro em pouco conseguiu concentrar energia
bastante para gritar para aqueles que o cercavam: «Vinde para perto de mim,
todos vós que fostes criados dos meus membros, todos os que nascestes de mim, e
eu direi o que me aconteceu.»
Quando todos estavam reunidos e voltavam para ele a
sua atenção, Rá continuou: «Fui fendo por alguma coisa bem mortífera. Sei no
meu coração que é essa a verdade, embora os meus olhos não tivessem visto o que
foi e minha mão nada tivesse alcançado. Tenho a certeza de que nenhum de vós
teria feito essa coisa tão horrível comigo. Mas posso dizer que nunca senti uma
dor como a que estou sentindo. Não é possível haver uma dor maior.»
No seu estado de choque, começou a lembrar aos
deuses quem era exatamente ele, repetindo as suas origens divinas e a sua
linhagem. Declarou também que seu pai lhe havia dado o nome e que ele era um
deus de muitos nomes: «Meu pai e minha mãe pronunciaram meu nome e este foi
escondido no meu corpo para que ninguém jamais pudesse lançar sobre mim um
sortilégio. Saí do meu santuário como sempre faço e comecei a fazer a minha
jornada através da terra que criei. De repente, alguém ou alguma coisa me
atacou, e eu não posso imaginar o que foi. O coração queima-me e o corpo treme.
Por favor, convoquem até aqui meus filhos, em especial os deuses que entendem
de magia, sabem falar inteligentemente e têm um conhecimento capaz de penetrar
até aos céus.»
A sua mensagem foi transmitida e os deuses, filhos
de Rá, começaram a reunir-se. Chegaram de todos os cantos do universo, num
estado de grande incerteza, já que poucos sabiam exatamente o que havia
acontecido. Estava ele realmente no seu leito de morte?
Os filhos de Rá apareceram preparados para chorar o
pai, mas entre eles estava Isis, e ela chegou equipada com a sua magia e com a
boca pronta a ministrar o sopro da vida. Com seus encantamentos e fórmulas, ela
poderia afastar todos os males e fazer reviver os mortos.
Disse então a Rá: «O que é que está sucedendo, meu
pai? Alguma serpente te injetou veneno? Alguma das criaturas que criaste
levantou a cabeça contra ti? Não há dúvida de que isso pode ser destruído com o
tipo certo de encantamento útil. Se tu quiseres, posso acabar com isso.»
Em resposta, Rá explicou como tinha saído para ver
as terras que criara e como fora mordido por alguma coisa que não tinha visto.
«O efeito é estranho», continuou ele. «Não parece
fogo nem água, mas eu estou mais frio que a água e mais quente que o fogo. O
suor corre pelo meu corpo e apesar disso tremo. Os meus olhos estão vidrados e
não posso ver o céu. Tenho o rosto banhado de suor como se fosse o auge do
Verão.»
«Diz-me o teu nome», disse Isis.
«Sou o criador do céu e da terra», respondeu Rá.
«Juntei as montanhas e criei as águas. Sou o grande procriador. Fiz o céu e
estabeleci os horizontes do Nascente e do Poente, nos quais coloquei
gloriosamente os deuses. Quando os meus olhos estão abertos, há luz, e quando
se fecham, há trevas. Quando dou ordem, a cheia do Nilo sobe. O meu nome, os
deuses não o sabem. Inventei o tempo e estabeleci os festivais do ano. Criei o
fogo da vida mediante o qual se fazem todas as obras. Ao amanhecer sou Khepri,
ao meio-dia, Rá, e ao entardecer, Atum.»
Esta declaração de Rá de nada serviu, pois o veneno
ainda lhe corria pelo corpo.
«Tudo isso está muito bem», respondeu Isis, «mas
não me disseste realmente o teu nome. Se me disseres, tirar-te-ei o veneno do
corpo. Quem me revelar o seu nome viverá.»
Dado que não parecia haver decréscimo na força da
dor, Rá cedeu a ísis: «Vou dar ouvidos à minha filha Isis, de modo que o meu
nome passará do meu corpo para o corpo dela. Foi ele oculto dentro de mim, o
mais divino dos deuses, a fim de que eu pudesse navegar tranquilamente com a
minha barca nos céus. Depois que o meu nome passar do meu coração para ti,
poderás dizê-lo a teu filho Hórus, mas só depois de adverti-lo solenemente de
que não deve dizê-lo a mais ninguém.»
Depois de fazer essa declaração, Rá disse o seu
nome secreto a Isis, a grande mágica. Logo que ficou de posse do nome, Isis
tratou de proferir um encantamento adequado para libertar o corpo de Rá do
veneno que o tolhia. Então o veneno deixou os membros de Rá e ele ficou
inteiramente aliviado.
Todos os mitos
Este texto demonstra a importância do
nome e da nomeação no Antigo Egito (e também no Oriente antigo em geral). Na
verdade, o nome, constituinte integrante da visão mágica do mundo e
participante da essência da pessoa (ou de um deus, como é aqui o caso), não é
um simples rótulo; é, antes, significativo do poder, da personalidade e do
poder da personalidade daquele a que pertence (J. Candeias Sales). O nome era
uma parte da totalidade harmônica do ser egípcio, tido como um todo composto
pelo corpo, o ka e o ba,além da sombra (khaibit) e outros elementos.
Note-se entretanto as capacidades de
Isis como grande mágica e manipuladora de venenos, e os muitos nomes de Rá,
naturalmente de timbre solar, que não interessaram à deusa - o que ela queria
era saber o nome secreto, e conseguiu-o. Ganhar poder sobre um ser sobrenatural
através do conhecimento do seu «verdadeiro nome» é um tema constante em textos
mágicos e funerários do antigo Egito e um motivo comum a outras literaturas
universais. No presente caso, os nomes do deus solar contidos no texto refletem
a especulação teológica que se detecta em hinos do Império Novo (G. Pinch).
O texto apresentado data da XIX
dinastia e consta de dois papiros redigidos em escrita hierática, um oriundo do
Baixo Egito, hoje no Museu Egípcio de Turim (Papiro de Turim 1991), e um outro,
de Tebas, no Alto Egito, conhecido como Papiro Chester Beatty XI. O primeiro
contém a versão integral, e o segundo está fragmentado.
Foram estudados e publicados por John
WilsonemJ. Pritchard,ANET,pp. 12-14, e E. W. Budge, Egyptian Magic, Londres,
1981, pp. 137-141. Foi também publicado por M. Divin, Narrativas e Lendas do
Antigo Egito, pp. 10-15 (tradução de Versos de Figueiredo), tendo sido seguida
a versão original em francês.
Este mito mereceu um estudo
aprofundado de J. Candelas Sales, «O mito do poderoso nome secreto de Rá.
Importância e significado do nome pessoal na Antiguidade Pré-Clássica», em Da
PréHistória à História. Homenagem a Octávio da Veiga Ferreira, Lisboa, 1987,
pp. 355-567. Foram igualmente tidos em conta os com entários de G. Pinch,
Egyptian Mythology, pp. 69-71.
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