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Os Fatores que Levaram à Criação da Lenda da Papisa Joana
por Octavio da Cunha Botelho
O Travestismo nas Religiões
Relatos de mulheres que se vestem de homem a fim de alcançarem a execução de papéis exclusivos do sexo masculino são contados desde a Antiguidade na mitologia, na literatura, na história, no teatro e, mais recentemente, no cinema e na televisão. As histórias sempre foram atraentes, por isso cativam o interesse do público até hoje. Parece que o primeiro relato mitológico foi o de Agnodike (Αγνοδικη), uma jovem grega do século IV a.e.c., que se vestiu de homem para estudar medicina e, em seguida, exerceu a profissão médica, então praticada exclusivamente pelos homens de Atenas.[1]
A Virāta Parva (Quarta Seção) do épico Mahābhārata(महाभारत) narra o episódio do exílio do temível herói Arjuna(अर्जुन) na corte do rei Virāta, disfarçado de mulher e exercendo o papel de mestre de música e de dança, com o nome de Brhannala (बृहन्नऌ).[2] Quando o comandante Uttarakumāra foi aconselhado em recrutar Brhannala(Arjuna) como cocheiro de sua carruagem, a fim de se defender de um eminente ataque de um exército inimigo, ele exclamou surpreso: “Brhannala não é homem nem mulher. Como eu, que sou um puro kshartiya (casta dos guerreiros), posso ter uma mulher como condutor do meu carro? Não creio que seja correto. Estaria abaixo de minha dignidade ter uma mulher no comando das rédeas de meus cavalos…”. Em um trecho mais adiante, uma princesa trouxe para Brhannala (Arjuna) um vestido brilhante como o sol” (Pardilla, 1986: vol. I, 459-60). Estes são exemplos de que o valente e temível guerreiro Arjuna, na realidade, se travestiu de mulher. No desfecho da batalha, Brhannala destruiu o exército dos Kurus e, em seguida, sua verdadeira identidade, como o valente e invencível Arjuna, foi revelada.
Mahāpajāpatī Gotami, tia e mãe de leite de Buda, a fim de conseguir ser aceita como a primeira monja na ordem (sangha), travestiu-se de monge raspando o cabelo, vestiu a túnica amarela, descalça e com o corpo coberto de pó, tal como os monges budistas, suplicou por três vezes até ser aceita (Warren, 1995: 442).
O Antigo Testamento proíbe o travestismo: “Uma mulher não deve vestir um traje masculino, nem um homem deve vestir uma roupa de mulher; pois quem quer que faça tal coisa está aborrecendo ao Senhor seu Deus” (Deuteronômio, 22.05 – NRSV).
Na história, os casos mais conhecidos de mulheres que se passam por homens estão nos momentos de guerra. O exemplo mais conhecido é o de Joana d’Arc. No Brasil, ficou conhecida Maria Quitéria de Jesus Medeiros (1792-1853), quem ingressou no exército brasileiro travestida de homem, chegou a até ao posto de tenente e lutou na guerra contra os portugueses na Bahia nos anos 1822-3.
Travestismo (em inglês: cross-dressing), às vezes grafado como transvestismo, não é o mesmo que transsexualidade. Trata-se do ato de vestir alguém ou a si próprio de modo a parecer de outro sexo ou de outra condição ou de outra idade. Um homem que se veste de mulher, uma criança que se veste de adulto, uma mulher que se veste de homem, uma jovem que se veste de velha, um executivo que se veste de caipira do campo e uma virgem que se veste de grávida são exemplos de travestismos. Portanto, o travestismo não acontece apenas de um sexo para outro, pode ser de uma idade para outra ou de uma condição para outra. Enquanto que, transsexualidade é a mudança biológica de sexo, de modo que uma pessoa travestida não é um travesti que mudou sua sexualidade biológica. Também, as questões da identidade e do objetivo do travestismo fazem a diferença.
A lenda da papisa Joana[3] é o curioso relato sobre uma jovem travestida de homem que foi muito longe em sua carreira. Ela foi secretária da cúria, cardeal e depois ocupou o trono da instituição mais poderosa da Europa na época, a Igreja Católica, por mais de dois anos.
A Manipulação Textual no Passado
Em uma época quando ainda não existia os meios de se comunicar diretamente com as massas, tais como hoje temos os jornais, as revistas, o rádio, a televisão, a internet, etc., bem como a quase totalidade de população era analfabeta, o meio mais eficaz de controlar a opinião pública era através da manipulação dos textos influentes. Em uma sociedade predominantemente religiosa, isto significava alterar os livros religiosos. Sendo assim, os poucos alfabetizados eram os formadores de opiniões das massas e os intermediários entre a cultura e a população analfabeta. Então, a estratégia de manipulação funcionava assim. Quando os manipuladores desejavam que um texto fosse entendido conforme a interpretação que eles sustentavam, os manuscritos eram alterados pelos copistas, ou omitidos os trechos inconvenientes, conforme a determinação dos manipuladores, para que, quando os alfabetizados os lessem, eles, em seguida, transmitissem as ideias manipuladas, conforme a intenção dos manipuladores de textos, para os analfabetos, através de discursos, de sermões, de pregações, de leituras públicas, etc. Desta maneira as ideias manipuladas chegavam até a imensa população analfabeta.
O trabalho de recuperação e de restauração destes textos manipulados para a sua forma original ou, pelos menos, o mais próximo possível do original, recebe atualmente o nome de Crítica Textual.
Então, quando sabemos que um texto foi muito alterado ou omitido em suas partes, durante o processo de transcrição, e sua originalidade irrecuperável, em razão da escassez de textos na linhagem manuscrita, torna-se difícil para os historiadores determinar com segurança a historicidade dos fatos narrados no seu conteúdo. Pois, temos conhecimento de registros oficiais de que alguns textos no passado foram manipulados ou mutilados. Por exemplo, no caso do Talmude, um livro importante do Judaísmo Rabínico, temos abundantes registros medievais da campanha ostensiva da Igreja Católica de eliminar as menções humilhantes a Jesus e ao Cristianismo em seu texto, através de bulas e de éditos papais, bem como através de decretos episcopais da Idade Média. Agora, quando não temos documentação registrando as manipulações textuais ou, pior ainda, não é possível rastrear as manipulações através da linhagem manuscrita, a determinação de que o texto foi alterado ou não, torna-se impossível. Este é o caso que acontece com o conjunto de documentação da papisa Joana.
O principal empasse para solucionar se o relato sobre a papisa Joana é lenda ou fato está na divisão entre aqueles que alegam que o relato é uma lenda (a grande maioria dos pesquisadores a partir do século XIX: Döllinger, 1872; Kelly, 1988; Pardoe, 1988; Boureau, 2001; Rustici, 2006 e Noble, 2013), pois o seu papado não encaixa em intervalo algum na história papal, conforme as datas mencionadas nas narrativas, uma vez que os registros estão bem documentados (Crônicas Medievais) e bem fundamentados, portanto não restando espaço para o pontificado de uma papisa em época alguma. Enquanto aqueles que alegam que o relato da papisa Joana é um fato histórico (uma pequena minoria de autores recentes: Morris, 1985 e Stanford, 1999), ou seja, ela realmente existiu e ocupou o trono papal, por não poderem se fundamentar nos registros (crônicas) e nas documentações sobreviventes, sustentam que estes documentos foram manipulados e mutilados através de uma campanha da Igreja com o objetivo de eliminar todas as menções sobre a papisa Joana nas Crônicas Medievais, logo após o seu papado. Todavia, não existe registro desta campanha de queima de arquivo, tampouco o processo de eliminação das menções de papisa Joana é difícil de ser rastreado nos manuscritos sobreviventes, por isso a maioria dos pesquisadores atuais, ocupados com este assunto, é da opinião que papisa Joana foi uma lenda medieval.
Por ter acontecido tantas manipulações de textos no passado, sobretudo em uma época de fortes interesses ideológicos e de disputa por poder no interior da Igreja, como aconteceu na Idade Média, mesmo não tendo os registros, e as evidências manuscritas necessárias para a comprovação das omissões e das alterações, a convicção de muitos, de que papisa Joana foi uma lenda, não pode ser assegurada como uma confirmação totalmente concluída, pois a possibilidade da queima de arquivo das menções sobre a papisa ainda é uma questão a se pensar.
Outro problema para a absoluta confiança nos sobreviventes registros escritos é a oralidade, ou seja, o quando da tradição oral dos relatos sobre a papisa possuía historicidade ou estava carregada de boatos, também, o quanto destas narrativas foi incluído e o quanto ficou de fora nas primeiras crônicas do século XIII e.c., bem como o tanto que foi acrescido, alterado e omitido nos registros posteriores. Pois, sabemos que, na Idade Média, muitas histórias eram preservadas através da transmissão oral, uma vez que muitos eram analfabetos. Para se ter ideia do tanto que a lenda foi acrescida com o passar dos anos, em comparação com os primeiros registros, do século XIII e.c., de Jean de Mailly, de Etienne de Bourboun, do Dominicano de Erfurt e de Martinus Polonus, basta observar que os relatos destes autores não ultrapassavam a extensão de um parágrafo, enquanto que a novela mais lida atualmente sobre a papisa, Pope Joan, a Novel, da autora Donna Woolfolk Cross, ultrapassa quinhentas páginas.
Enfim, com base nos registros e nos documentos papais (Crônicas Papais), a conclusão mais lógica é a de que papisa Joana realmente foi uma lenda, porém, a questão é a seguinte, se for descoberto que estes documentos (crônicas) foram manipulados, então os alicerces do edifício, sobre os quais os historiadores atuais construíram suas conclusões, irão se ruir, levando a edificação ao desmoronamento. Portanto, esta questão é a que iremos relatar e discutir em seguida.
Os Primeiros Registros
Apesar de algumas dúvidas, os historiadores apontam as Chronica Universalis Mettensis (Crônicas Universais de Metz), de autoria do padre dominicano Jean de Mailly, escritas em Latim e publicadas por volta do ano 1250 e.c., como o primeiro relato escrito sobre uma papisa, sem mencionar o nome. O conteúdo do texto é o seguinte: “Exige-se (confirmação), sobre um certo papa, ou melhor uma papisa, pois era uma mulher. Fingindo ser um homem, ele foi feito secretário da cúria, em virtude da retidão do seu caráter, então cardial e finalmente papa. Em um certo dia, quando ele tinha montado em um cavalo, ele deu à luz uma criança e imediatamente, pela justiça romana, teve os seus pés amarrados, foi puxado pela cauda do cavalo e foi apedrejado pelo povo por um percurso de meia légua, e onde ele morreu, ele foi enterrado, e lá está escrito: Petre, Pater Patrum, Papisse Prodito Partum (Pedro, Pai dos Padres, Publique o Parto da Papisa). Com isso foi criado o Jejum das Quatro Vezes, chamado de Jejum da Papisa” (Noble, 2013: 219; texto latino: 219n2).
A fim de transmitir um sentido mais coerente, alguns autores traduzem esse texto com o pronome no gênero feminino “ela”, ao invés do pronome “ele” (Stanford, 1999: 17 e Rustici, 2006: 04), com a intenção, por exemplo, de disfarçar a estranheza da frase “ele deu à luz uma criança” (peperit puerum). Porém, o texto latino coloca todos os pronomes no masculino através dos verbos no particípio passado masculino: ele foi “feito” (factus), ele foi “arrastado” (tractus), ele foi “apedrejado” (lapidātus) e ele foi “enterrado” (sepultus), por isso preferi a tradução inglesa de Thomas F. X. Noble (2013: 219), que traduz fielmente o texto latino.[4]
Observe que o autor Jean de Mailly pareceu expressar dúvidas sobre a historicidade da papisa ao escrever este texto em 1250 e.c., ao iniciá-lo com o verbo “require” (exige-se), talvez no sentido de ‘exige-se mais investigação’,[5]também pareceu sentir dúvida ao colocar todos os pronomes no masculino (ele), ao invés do feminino “ela”, ao se referir à papisa. Ademais, o nome da papisa não é mencionado, tampouco a data do seu pontificado e sua terra natal, tal como aparecem nas crônicas subsequentes.
Alguns anos depois (1265 e.c.), um autor anônimo, que ficou conhecido por “o Franciscano de Erfurt”, compôs as Chronica Minor, onde a papisa também é mencionada. Ele inspirou-se na narrativa de Jean de Mailly e acrescentou outros detalhes: “Existiu um outro falso papa, cujo nome e época não são conhecidos. Pois, ela era uma mulher, tal como é reconhecido pelos romanos, de aparência refinada, de grande saber e hipocritamente de elevada conduta. Ela se disfarçou com roupas de homem e foi eleita ao papado. Enquanto papa, ela se engravidou, e quando ela estava grávida, um demônio publicamente anunciou o fato para todos em praça pública gritando este verso: ‘Papa, Pater Patrum, Papisse Prodito Partum (Papa, Pai dos Padres, Publique o Parto da Papisa” (Stanford, 1999: 28).
A narrativa das Chronica Minor coincide em alguns pontos com a de Jean de Mailly, enquanto diverge em outros. Note que o nome e a época do papado da papisa são desconhecidos, ela se disfarçou com roupas de homens, possuía grande saber e foi eleita papa, tal como no relato das Chronica Universalis, no entanto, ao invés de dar à luz em público, depois ser arrastada e apedrejada até a morte, sendo também sepultada no local da morte, nas Chronica Minor o segredo da gravidez é revelado por um demônio em praça pública. Observe também que a primeira palavra na frase com os seis “P”s nas Chronica Universalis é “Petre” (Pedro), enquanto que nas Chronica Minor é “Papa” (papa). Ademais, a frase com os seis “P”s na primeira narrativa está gravada na sepultura, enquanto que na segunda foi uma frase dita pelo demônio.
Aproximadamente na mesma época, um tratado escrito por um inquisidor e pregador dominicano, Etiene de Bourdon, conhecido com o título de Tractatus de Diversis Materiis Praedicabilibus (Tratado Sobre Diversos Materiais para Pregação), publicado por volta de 1260, ecoou a narrativa de Jean de Mailly, ao mesmo tempo acrescentando alguns detalhes, tal como a data do pontificado da papisa, porém em um sentido mais reprovador: “Um impressionante golpe de audácia, ou melhor, de insanidade, aconteceu por volta do ano 1100, tal como é dito nas crônicas. Uma certa mulher educada, instruída na arte da escrita, assumindo roupas masculinas e apresentando-se como homem, veio para Roma e, tendo sido aceita, ambos por sua energia e por seu saber, foi feita secretária da cúria, então, com a ajuda do diabo, foi feita cardial e depois papa. Ela se engravidou e deu à luz quando ela montava um cavalo e foi arrastada para fora da cidade, ela foi apedrejada pelo povo por uma légua. Ela foi enterrada onde ela morreu e na pedra colocada sobre o seu cadáver, este pequeno verso foi escrito: ‘Parce Pater Patrum Papisse Prodere Partum (Evite, Pai dos Padres, Publicar o Parto da Papisa’. Veja a que fim abominável tal ousada presunção conduz” (Noble, 2013: 219; texto latino: 219n3).
Observe que a narrativa de Etiene de Bourdon coincide em alguns pontos e diverge em outros da narrativa de Jean de Mailly, bem como acrescenta mais detalhes. A palavra inicial na frase aliterada dos seis “P”s agora é “Parce”, do verbo “parcere”, que significa abster-se de, poupar, economizar, evitar. Note também que, diferente de Jean de Mailly, os pronomes e os verbos estão no feminino. Ele incluiu uma data para o pontificado, 1100 e.c. A frase “tal como é dito nas crônicas” (ut dicitur in chronicis) e objeto de discussão entre os pesquisadores, para saber quais seriam estas crônicas. Pois, alguns autores alegam que existiram mais referências sobre a papisa antes do Tractatus de Etiene de Bourdon além das Chronica Universalis e das Chronica Minor, mas a igreja as destruiu, através de uma campanha na intenção de apagar a existência da papisa Joana da história.
A discussão gira em torno da suspeita de que a papisa é mencionada por autores anteriores a Jean de Mailly (século XIII), ou seja, autores dos séculos XI, XII e início do século XIII, tais como Marianus Scotus (1028-82), Sigebert de Gembloux (1035-1112), Otto de Freising (1111-58), Godfrey de Viterbo (1120-96) e Gervase de Tilbury (1150-1221). Entretanto, em cada caso, a referência à papisa está ausente nos mais antigos manuscritos sobreviventes destes autores, isto é, a referência à papisa somente aparece nos manuscritos mais tardios, o que levou alguns pesquisadores à conclusão de que estas referências tardias à papisa são interpolações subsequentes feitas por copistas após 1250 e.c., quando o policiamento tinha sido relaxado e a historicidade da papisa tinha se tornado crível por muitos dentro da Igreja. Em contrapartida, os autores que acreditam na historicidade da papisa alegam que, a ausência da referência à papisa nos mais antigos manuscritos destes autores, pelos primeiros copistas dos manuscritos autógrafos, acontece em virtude da campanha para eliminá-la da história, sendo que, a partir do século XIII e.c., quando a campanha relaxou, os copistas dos manuscritos mais tardios não foram forçados a omitirem o relato da papisa, pois a sua história era quase universalmente aceita. Ou que as cópias mais tardias escapuliram à censura da Igreja, por isso as referências aparecem (ver: Rustici, 2006: 08 e Noble, 2013: 219).
Curioso é o fato de que, de todos os manuscritos sobreviventes da obra Pantheon de Godfrey de Viterbo, escrita em 1190 e.c., apenas em um aparece a frase “a papisa Joana não é enumerada”. Então, a autora Joan Morris, que defendeu a historicidade da papisa, justificou que este único manuscrito escapuliu à censura da Igreja, fato que mostra o rigor pelo qual o policiamento era conduzido (Rustici, 2006: 08 e Noble, 2013: 219). A solução para este empasse parece ainda distante, embora a hipótese de que as referências à papisa nos manuscritos tardios sejam interpolações tem mais força entre os historiadores no momento.
Por fim, entre todas as primeiras narrativas sobre a papisa, a mais influente que, mais tarde, se tornaria a fonte de inspiração para todos os autores subsequentes, que escreveram sobre o assunto, foi a Chronicon Pontificum et Imperatorum (Crônica dos Papas e Imperadores), escrita pelo padre dominicano Martinus Polonus (Martin Strebski), falecido em 1278 e.c. Segundo a maioria dos historiadores, tudo que foi escrito em seguida sobre a papisa, quer reproduzindo ou acrescentando, foi extraído a partir desta obra, publicada entre os anos 1265 e 1277 e.c. A popularidade do relato de Martinus Polonus é confirmada pela enorme quantidade de cópias manuscritas sobreviventes, são cerca de 425. Também, o número de traduções é grande para aquela época, pois a obra foi traduzida para o tcheco, para o francês, para o alemão, para o italiano, para o espanhol e para o inglês (Rustici, 2006: 06). Esta curta narrativa serviu de inspiração para o humanista Giovanni Boccaccio (1313-75), para o historiador papal Bartolomeo Platina (1421-81), para o protestante John Bale (1495-1563) e para tantos outros.
Diferente das anteriores, a narrativa de Martinus introduziu o nome da papisa (João),[6] o local de seu nascimento (Mainz), o amante, a data do pontificado (855 e.c.), a duração do pontificado (dois anos, sete meses e quatro dias), o local dos estudos (Atenas) e o local do inesperado parto (em uma estreita passagem entre o Coliseu e a igreja de são Clemente). A narrativa é a seguinte:
“Após Leão (isto é, Leão IV), João, um inglês, nascido em Mainz, ocupou o trono papal por dois anos, sete meses e quatro dias. Ele morreu em Roma e o papado ficou vago por um mês. Ele, tal como é afirmado, era uma mulher, e quando ela era ainda jovem, ela foi levada para Atenas, vestida como um homem por um certo amante. Ela progrediu tanto nos vários ramos do conhecimento que ninguém era capar de igualá-la. Em seguida, ela lecionou em Roma e teve grandes professores como seus alunos e auditores. E porque a sua vida e o seu saber foram estimados na Cidade (Roma), ela foi unanimemente eleita papa. Mas, quando exercia o seu papado, ela ficou grávida de seu amante. Desconhecendo o momento do parto, quando estava se dirigindo da capela de são Pedro para o Latrão, ela deu à luz em uma estreita passagem entre o Coliseu e a igreja de são Clemente e, após sua morte, tal como é dito, ela foi enterrada naquele mesmo local. Porque o senhor Papa evita aquela rua é acreditado por muitos que ele faz isto em virtude da repugnância daquele evento. Ele não é incluído no catálogo dos santos pontífices em virtude da deformidade do sexo feminino, quanto à esta circunstância (a de governar como papa) ” (Noble, 2013: 219; texto latino 219n5).
Primeiramente, observe que, diferente dos relatos dos autores anteriores, Martinus revezou o uso dos pronomes masculino (ele) e feminino (ela) no seu texto. A papisa é chamada de Iohannes (João) ao invés de Iohanna (Joana).[7] Também, algumas frases na voz passiva indicam que ele incluiu em seu registro dados extraídos da tradição oral, sugerindo para o fato de que, além dos poucos registros escritos até então existentes, havia uma transmissão oral paralela, passada de geração para geração. Frases tais como “tal como é afirmado” (ut asseritur) e “tal como é dito” (ut dicitur) acenam para fontes orais. Uma indicação de que a história da papisa tinha adquirido credibilidade naquela época pode ser encontrada na frase “é acreditado por muitos” (creditur a plerisque). Enquanto que, a propósito, a frase “em virtude da deformidade do sexo feminino” (propter mulieris sexus quantum ad hoc deformitatem) é chocante para a ideia de maior igualdade entre os gêneros que temos hoje. Parece que Martinus acreditava na concepção aristotélica de que “a mulher é um homem deformado”.[8]
As diferenças com as narrativas anteriores são que Martinus não mencionou o fato da papisa ter sido arrastada pelas ruas de Roma e também não mencionou a frase aliterada com os seis “P”s. Com os manuscritos da Chronicon de Martinus acontece algo semelhante, ou seja, o relato da carreira da papisa está ausente nas versões mais antigas e, mesmo assim, quando aparece nas versões mais tardias, aparece somente nas margens da página (Rustici, 2006: 07). Por isso os autores Rosemary Pardoe, Darroll Pardoe e Alain Boureau concluem que se trata de uma interpolação tardia. Referência à papisa aparece em um manuscrito do século XII e.c. (Vaticanus Latinus 3762) do Liber Pontificalis (Livro dos Papas),[9] uma coleção de biografias papais compilada no século IX e.c. e depois aumentada nas edições posteriores. Entretanto, o verbete relativo à papisa Joana, que combina com o relato da Chronicon palavra por palavra, aparece na margem de baixo de uma página com uma caligrafia que difere daquela do resto do texto principal. E o que é também suspeito, o relato da carreira do papa Leão IV continua na próxima página, evidenciando que foi realmente uma interpolação (Rustici, 2006: 07-8; ver também: Döllinger, 1872: 24-5).
Os pesquisadores modernos (Morris, 1985: 71-2; Pardoe, 1988: 12-4 e Boureau, 2001: 116) concluem, portanto, que o relato da papisa na Chronicon foi acrescentado no manuscrito em algum momento do século XIV e.c., provavelmente pelo historiador Landolfo Colonna (morto em 1331 e.c.), quem possuía o texto naquela época. Daí que, apenas vinte e seis anos após Martinus compor a Chronicon, a narrativa da papisa passou a ser aceita como parte do texto (Rustici, 2006: 08).
Com o tempo, o texto de Martinus Polonus se tornou a versão canônica da história da papisa Joana. Thomas F. X. Noble observou: “Literalmente, incontáveis autores posteriores simplesmente apropriaram da versão de Martinus da história da papisa Joana. Ironicamente, quando vários autores dos séculos XVI e XVII e.c. compilaram extensas listas de autores que confirmavam a verdade da história, eles deixaram de mencionar, ou também, não perceberam, que aqueles autores estavam meramente repetindo, quase que literalmente, o relato de Martinus” (Noble, 2013: 219).
A Estátua na Catedral de Siena
Outro exemplo de que a lenda da papisa Joana foi muito popular durante a Idade Média está na existência de uma estátua da papisa, a qual ficou exposta na Catedral de Siena até o fim do século XVI e.c. Que esta estátua existiu e ficou exposta no interior desta igreja por alguns anos está confirmada em alguns documentos sobreviventes. Porém, quem visitar esta catedral hoje se decepcionará por não encontrar mais a estátua da papisa, entre as cerca de 170 estátuas de papas que adornam a nave da igreja, uma vez que ela foi transformada na figura do papa Zacarias, conforme o pedido do polêmico padre francês Florimond de Raemond (1540-1602 e.c.), quem reclamou da estátua ao papa Clemente VIII (pontificado de 1592-1605 e.c.). Então, o Grande Duque de Toscana ordenou a remoção da estátua em 1600 e.c., no entanto, ao invés da simples remoção, a estátua foi alterada a fim de representar o papa Zacarias, pelo artesão local e, em seguida, retornada ao seu lugar de origem. Em seu livro Erreur populaire de la papesse Jane (última edição 1594 e.c.), Raemond argumentou que tal papisa nunca existiu e por isso se lançou em uma campanha para remover a estátua. (Rustici, 2006: 13).
Esta reação de Florimond de Raemond reflete a mudança na visão sobre a historicidade da papisa, que estava emergindo no início da Idade Moderna, quando se começou a desconfiar da veracidade e a colocar o assunto em debate.
Personagens que Inspiraram a Criação da Lenda
Especulações sobre quem foram aqueles ou aquelas que inspiraram a criação da lenda existem em grande número desde muitos séculos. Dentre as tantas sugestões, duas personagens são as mais mencionadas pelos historiadores: o papa João VIII, que ocupou o trono papal de 872 a 882 e.c., um papa considerado afeminado e Marozia (892-937), juntamente com sua mãe Teodora (morta em 926 e.c.), atuou como um efetivo poder feminino por traz do trono papal.
João VIII não foi capaz de enfrentar corajosamente o patriarca de Constantinopla Photius (810-95), um candidato ao patriarcado que tinha sido excomungado por um papa anterior e que tinha escrito um ataque ao dogma de Roma bem como às políticas eclesiásticas, por isso foi considerado um papa afeminado, daí a criação da lenda para zombar da situação de que ele foi quase como que uma mulher no papado.
Enquanto que Teodora e sua filha Marozia nomearam e destituíram papas com seu poder, pois os pontífices daquela época eram como marionetes em suas mãos, em outras palavras, os papas vestiam os trajes papais e sentavam no trono, mas eram as mulheres que governavam. O abuso e a libertinagem destas mulheres foram tão grandes que este período foi denominado pelos historiadores de “governo das prostitutas”. Por isso a criação da lenda para mostrar como seria uma mulher sentada no trono papal e com isso debochar da fraqueza dos papas. Conclusão, só faltou uma mulher ser eleita papa (para detalhes, consultar: Rustici, 2006: 02-5 e Noble, 2013: 219).
Fatos que Contribuíram para a Consolidação da Lenda
Dentre todos, quatro são os fatos mais analisados pelos historiadores: A) o desvio da comitiva papal para evitar o local onde a papisa deu à luz; B) a lápide com os seis “P”s aliterados; C) a estátua da mãe com a criança no local onde a papisa deu à lua e D) a cadeira perfurada utilizada na cerimônia papal para confirmar a presença dos testículos do papa que está sendo coroado.
A). Quanto ao desvio da procissão papal, naquela época não existia o Vaticano, mas já existia a catedral de são Pedro. O papa residia no palácio do Latrão e realizava frequentemente o percurso entre estes dois locais. Para efetuar este trajeto, a procissão papal teria de passar pelo Coliseu e pela basílica de são Clemente. Estas duas edificações são ligadas pela Via San Giovanni in Luteranno. Na Idade Média, pelo que é conhecido, esta rua possuía uma estátua de uma mãe com uma criança. Então, uma vez que esta rua era muito estreita, a procissão papal era obrigada a evitá-la. Daí que, muitos começaram a pensar que aquele era o local onde a papisa Joana deu à luz, de modo que o desvio acontecia em razão da repugnância do papa por aquele acontecimento e que a estátua foi construída para marcar o local.[10]
Que este desvio acontecia efetivamente está confirmado no relato sobre uma advertência, recebida pelo Mestre de Cerimônias Papais, John Burchard (bispo de Strasbourg), que organizou uma procissão para o papa Inocêncio VIII, em 1486 e.c., no seu livro Liber Nōtārum (Livro das Notas), por não ter desviado a procissão da tal rua estreita que abrigava a estátua da papisa. O livro registrou o seguinte: “Ao ir e ao voltar, ele (o papa) veio pelo caminho do Coliseu e por aquela rua estreita onde a estátua do papa mulher (imago papissae) está localizada, em recordação ao evento, diz-se que João VII (ou VIII) Angelicus deu à luz uma criança naquele local. Por esta razão, muitos dizem que os papas não são autorizados a montar um cavalo lá. Por isso, o senhor arcebispo de Florença, o bispo de Massano e Hugo de Bencii, o sub decano apostólico, emitiram uma reprimenda para mim. Entretanto, eu conversei sobre este assunto com o bispo de Pienza, o qual me disse que é uma tolice e heresia pensar que os papas são proibidos de passar por aquela rua, nenhum documento ou costume autênticos é conhecido que os proíba de fazê-lo” (Liber Nōtārum, parte I, vol. 01, p. 176; ver também: Stanford, 1999: 104-5).
A explicação histórica para este desvio é a de que a rua que abrigava a estátua era estreita demais para uma procissão atravessá-la confortavelmente, então o desvio era necessário. Visitante que visitarem o local hoje não a encontrarão como na Idade Média, uma vez que o papa Sexto V (pontificado de 1585-90) reformou e alargou a rua.[11]
B). A inscrição na lápide com os seis “P”s aliterados na sepultura da papisa não é rigorosamente coincidente nos quatro primeiros relatos, sobretudo a primeira palavra. No relato de Jean de Mailly, é Petre (Pedro), no relato do Franciscano de Erfurt, é Papa (Pai), no de Etiene de Bourbon é Parce (Evite) e no de Martinus Polonus, a frase aliterada é omitida. A conclusão que se pode extrair desta divergência é a de que nenhum destes autores conheceu a lápide pessoalmente, portanto, devem ter extraído a informação a partir da tradição oral. Sendo que, no relato das Chronica Minor do Franciscano de Erfurt, a frase não está inscrita em uma lápide, mas sim foi pronunciada por um demônio, a fim de denunciar a farsa da papisa.
Também, nos relatos de Jean de Mailly e do Franciscano de Erfurt, o verbo prōdere (publicar) está no imperativo “prōditō” (publique), enquanto que no relato de Etiene de Bourbon, o verbo está no infinitivo “prōdere” (publicar).
C). Quanto à estátua da mãe com a criança, a qual muitos em Roma acreditavam que representava a papisa Joana, o registro mais antigo está na obra Mirabilia Urbis Romae (Maravilhas da Cidade de Roma), a primeira edição publicada aproximadamente em 1375 e.c., um livro sem autor, sem paginação e que sofreu muitas alterações nas edições subsequentes.[12] Nesta obra, é mencionado que a estátua da papisa se localizava “perto do Coliseu” (Stanford, 1999: 103). Outro registro posterior, mais confiável, está na obra Chronicon Adae de Usk, 1377-1421 (Crônica de Adão de Usk), onde o autor Adão de Usk, ao relatar uma procissão papal para coroação, ocorrida em 1404 e.c., a localização da estátua é mencionada: “Então, após virar para o lado, em razão da repulsa da papisa Joana, cuja imagem de pedra com seu filho está localizada na rua próxima à catedral de são Clemente…” (Thompson, 1904: 263).
Ainda mais tarde, um registro muito mencionado pelos historiadores é o de Martinho Lutero (1483-1546 e.c.), quem visitou Roma na sua juventude (provavelmente no ano 1510 e.c.), ele viu a estátua e a descreveu assim: “… uma mulher com trajes no estilo papal segurando uma criança e um cetro”, mas expressou surpresa que os papas permitissem que aquela estátua permanecesse lá (Stanford, 1999: 104).
Tudo indica que a tal estátua existiu, agora a discussão entre os autores é se aquela estatua era mesmo da papisa Joana ou representava uma outra mulher, talvez uma deusa da religião clássica grega. Giuseppe Tomassetti sugeriu que uma estátua, hoje exposta na Galeria Chiaramonti do Museu do Vaticano, representa a papisa Joana e seu filho (Tomassetti, 1907: 82-95; ver também: Noble, 2013: 219n26). Outros interpretam que esta estátua no museu representa a deusa romana Juno amamentando Hércules quando criança. Enquanto que outros autores alegam que a estátua foi destruída quando da reforma e do alargamento da tal rua estreita (Vicus Papissa), obra feita pelo papa Sexto V, no final do século XVI e.c. (para mais detalhes, ver: Döllinger, 1874: 33s).
D). A cadeira perfurada, que na verdade são duas que sobrevivem, uma está no Museu do Vaticano e a outra no Museu do Louvre, levada para Paris por Napoleão como espólio de guerra. A existência destas cadeiras perfuradas representa o fator mais intrigante e mais perturbador para a solução da historicidade ou da ficcionalidade da papisa Joana. Elas são cadeiras com um furo redondo no meio do assento, algo semelhante a um vaso sanitário. Os defensores da historicidade, alegam que elas eram utilizadas para se verificar os testículos do futuro papa durante a cerimônia de coroação, ou seja, se o candidato não era um eunuco ou uma mulher disfarçada. Rito papal criado após o escândalo da papisa, dando prova de que ela realmente existiu e subiu no trono pontifical.
Os registros sobre a ocorrência deste rito existem. Por volta do ano 1290 e.c., o padre dominicano Roberto d’Uzès relatou em uma de suas visões: “Então, o Espírito levou-me até o palácio do Latrão. E aí, colocou-me no pórtico, diante da cadeira porfírica, onde se diz que eles verificam se o papa é homem” (Noble, 2013: 219). No século seguinte, precisamente em 1379 e.c., Johannes de Viktring, após uma discussão sobre a papisa Joana, registrou: “Para evitar um erro tal, tão logo o eleito se senta no trono de Pedro, o menor dos decanos toca os seus genitais em uma cadeira perfurada para tal proposito” (Idem, 219). Em 1644 e.c., o viajante sueco Lars Banck alegou ter testemunhado o rito de verificação dos testículos na cerimônia de coroação do papa Inocêncio X (Idem, 219).
Já os que alegam que tudo isto é um amontoado de mal-entendidos, procuram explicar os motivos das confusões, porém das maneiras mais contraditórias entre si, até mesmo entre os autores daquela época. Por exemplo, o Mestre de Cerimônias Papais, John Buchard, descreveu assim o uso destas cadeiras de porfírio na cerimônia de coroação do papa Inocêncio VIII, em 1484 e.c.: “… o papa foi conduzido até a porta da capela de são Silvestre, perto da qual estavam colocadas duas cadeiras planas de porfírio, na primeira do qual, da direita da porta, o papa se sentou, como que deitado; e quando ele estava aí sentado, o prior do Latrão entregou nas mãos do papa um bastão em sinal de poder e de virtude, e as chaves da Basílica e do palácio do Latrão, em sinal de poder de fechar e de abrir, de prender e de saltar”. Portanto, desta descrição é possível extrair que as cadeiras perfuradas de porfírio não eram utilizadas com o objetivo de verificar a presença dos testículos do candidato ao papado, mas sim faziam parte das cerimônias da entrega das chaves e do bastão ao futuro pontífice. No entanto, o intrigante é saber porque estas cadeiras eram perfuradas.
Em 1479 e.c., o então Prefeito da Biblioteca Papal, Bartolomeo Platina, justificou assim o uso das cadeiras perfuradas, excluindo os boatos populares que as cercavam: “… a fim que a pessoa coroada possa reconhecer que não é divina, mas sim humana, e sujeita às necessidades da natureza, por isso ela (a cadeira) é chamada de sēdēs stercoraria”[13]. E chegou a dizer que o papa, durante o rito, “tinha que defecar” (Noble, 2013: 219). Thomas F. X. Noble observou que, no relato de Bartolomeo Platina, ele confundiu as cadeiras, portanto, se um clérigo tão próximo ao papa, tal como foi Platina, Prefeito da Biblioteca Papal, confundiu as cadeiras, imagine o tanto que alguém da população poderia ter confundido as cadeiras e inventado o boato.
O último papa que foi coroado mediante este rito foi Leão X em 1513 e.c., pois seu sucessor, o papa Adriano VI (pontificado de 1522-3 e.c.) aboliu o rito. Então, se o rito foi abolido em 1522 e.c. (ou 1523 e.c.), o viajante sueco Lars Banck não poderia ter visto este rito em 1644 e.c., durante a coroação do papa Inocêncio X. Daí que os historiadores ficaram intrigados, sem saber em quem confiar, se na abolição do rito por Adriano VI em 1523 e.c., ou se o rito continuou a ser executado e, com isso, o testemunho de L. Banck é verídico.
Conclusão
Os registros (crônicas) não deixam espaço para um pontificado da papisa. A data mais seguida pelos que acreditam na sua historicidade, 855 e.c., aquela mencionada por Martinus Polonus em sua Chronicon, não se encaixa, pois as crônicas registram que o papa Leão IV faleceu em 17 de julho de 855 e.c. e foi sucedido logo em seguida por Benedito III, em 29 de setembro do mesmo ano (Platina, sem data: 220-6: Mann, 1906: 258-328 e Kelly, 1988: 105), portanto apenas pouco mais de dois meses de vacância do papado, o que não é suficiente para a duração de dois anos, sete meses e quatro dias do pontificado da papisa Joana, mencionada na Chronicon.
Que o relato sobre a papisa Joana é uma lenda, é a conclusão sustentada pela maioria dos estudiosos deste assunto atualmente, entretanto, como foi mencionado no início deste estudo, só é possível chegar a esta conclusão através da absoluta confiança nos registros preservados, sobretudo nas crónicas medievais, ou seja, de que estes documentos reproduzem a verdadeira história papal e, o que é também importante, de que não existiu uma campanha para ocultar a existência da papisa Joana, pois, do contrário, muito do que foi preservado é material suspeito.
Agora, pois bem, um leitor desapaixonado, cujo conhecimento da história dos papas não é derivado exclusivamente das fontes da propaganda católica, poderá, de certa maneira, concluir que a existência de uma papisa não é mais absurda e, tampouco, mais repugnante, do que a existência dos imorais e insanos papas da Idade Média. Por exemplo, seria preferível ter uma papisa na cúpula da Igreja, naquela época, do que um insano papa Estevão VI, quem ordenou a exumação do cadáver do papa anterior, Formoso, em janeiro de 987 e.c., vestiu o seu corpo em decomposição com os trajes papais e promoveu um julgamento dos seus restos mortais, evento denominado pelos historiadores de “o Sínodo do Cadáver” (Kelly, 1988: 115-6), ou seja, o julgamento do papa defunto. Insanidade como esta só encontramos nos filmes de comédia ou nos programas de humor na TV.
Bibliografia
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WARREN, Henry Clarke. Buddhism in Translations. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1995.
Notas
[1] No filme Yentl (1983), a atriz Barbra Streisand interpreta o papel de uma jovem que se traveste de homem a fim de estudar em uma escola (yeshiva) de textos judaicos, exclusiva para homens. O filme foi baseado na peça homônima escrita por Isaac B. Singer e Leah Napolin, de 1975.
[2] Arjuna e os seus irmãos (os pāndavas) tiveram de permanecer no exílio por doze anos no bosque, e mais um ano ocultos sem serem identificados, em cumprimento a um acordo, após a derrota em um jogo de dados (Pardilla, 1986: vol. I, 275s). Portanto, foi com o disfarce de Brhannala que Arjuna passou o 13º ano oculto.
[3] Apesar do nome Joana ter sido o mais utilizado, a papisa foi também chamada de Gilberta, Agnes, Margaret, Isabel, Dorothy e Jutta por vários autores (Döllinger, 1872:41n).
[4] Para concordar com o pronome no gênero feminino (ela), os verbos latinos teriam de estar também no feminino: facta(feita), tracta (arrastada), lapidāta (apedrejada) e sepulta (enterrada). Na alusão à papisa Joana, Craig M. Rustici incluiu a frase “que não está registrada na lista dos bispos de Roma” em sua tradução de trechos das Chronica Universalis Mettensis de Jean de Mailly (p. 04), porém esta frase não aparece no texto latino publicado por Thomas F. X. Noble (p. 219n2).
[5] Thomas F. X. Noble informou que a palavra inicial do texto “require” (exige-se) aparece no manuscrito autógrafo de Jean de Mailly (Noble, 2013: 219). Peter Stanford, que acreditou na historicidade de papisa Joana, ignorou este verbo e iniciou a tradução deste texto com a frase: “É conhecido sobre um certo papa…” (Stanford, 1999: 17).
[6] Estranhamente, o autor colocou o nome da papisa no masculino.
[7] Nomes também grafados como Johannes e Johanna no Latim.
[8] Na Antiguidade e pela Idade Média, a ideia da deformidade e da inferioridade da mulher era comum. Aristóteles escreveu na sua obra Περι Ζωιων Γενεσεως (Peri Zoion Geneseos – Latim: De Generatione Animalium) II.03: “A razão é que a mulher é como se fosse um homem deformado” (Peck, 1943: 175). Esta frase foi influente em muitos teólogos, inclusive são Tomás de Aquino.
[9] O compilador inicial desta obra foi Anastasius Bibliothecarius (morto em 886). Ele foi contemporâneo da papisa Joana, se pudermos acreditar na data atribuída a ela por Martinus Polonus, disputou o trono papal com Benedito III, conseguiu ser eleito papa, mas foi destronado poucas semanas depois e Benedito III foi eleito papa em 855 e.c. (Kelly, 1988:105s), ano em que Martinus atribuiu o início do pontificado da papisa Joana. Mesmo assim, Anastasius conseguiu o cargo de bibliotecário papal e por isso foi encarregado de compilar as biografias dos papas no Liber Pontificalis. Daí que alguns autores suspeitam que Anastasius foi o inventor da lenda da papisa Joana, por ressentimento de ter sido destronado, a fim de desmoralizar o papado, porém a acusação de Anastasius de inventor da lenda é apenas uma conjectura.
[10] A ocorrência do desvio está registrada na obra Chronicon de Adão de Usk, ao relatar uma procissão papal de coroação em 1404 e.c.: “Então, após (a procissão) virar para o lado, em razão da repulsa da papisa Joana, cuja imagem de pedra com seu filho está localizada na rua próxima à catedral de são Clemente…” (Thompson, 1904: 263).
[11] A popularidade desta rua estreita era tão grande em Roma naquela época, que a rua Via dei Querceti, a qual era evitada, depois passou a ser chamada de Vicus Papissa, ou seja, Rua Papisa (Noble, 2013: 219; ver também: Stanford: 1999: 105).
[12] Nas diversas edições, algumas mencionam a estátua da papisa e outras edições não a mencionam. O curioso é que em uma das edições é mencionado que o cadáver da papisa Joana foi enterrado “entre os virtuosos” na catedral de são Pedro (Stanford, 1999: 103). Este túmulo nunca foi encontrado.
[13] Literalmente: sēdēs = cadeira; stercoraria = excrementosa, portanto corresponde ao que chamamos de “vaso sanitário”.
Fonte:https://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2018/01/13/os-fatores-que-levaram-a-criacao-da-lenda-da-papisa-joana/
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